O texto a seguir meu pai escreveu me usando como alter ego depois que disse a ele que pensava em problematizar sobre o preconceito que existe no Brasil sobre educação profissional técnica e tecnológica:
Tempos
atrás, foi-me solicitado que escrevesse algo sobre minha avó materna, num
momento em que ela receberia uma homenagem póstuma. Algo como uma biografia ou
perfil, que exaltasse sua postura de mulher resoluta e de pouca ou quase
nenhuma escolaridade e que influiu decisivamente na formação de seus dez
filhos, conduzindo-os ao sucesso.
Naquele
momento também, me via às voltas com a elaboração de artigo sobre educação,
examinando num mesmo contexto de influência o ensino tecnológico e o humanismo,
seus diferentes papéis e a mesma destinação no resultado.
Cuidando
da primeira tarefa, percebi que dois assuntos desconexos, tinham mais
pertinência do que poderia supor. Ora, “latu sensu” minha vó foi exímia
educadora, pois, em se tratando do mérito no êxito, ela atingiu alto grau de
competência.
Para
enquadrá-la na minha linha de raciocínio (tese), necessitei recuar um bom
período e acrescentar outros atores na cena, para ajudar compor o enredo e,
assim, acabei esmiuçando os papéis dos outros personagens, protagonistas, num
momento e coadjuvantes em outros.
Zé
Baiano, meu avó materno, era um bom e bem humorado homem, de porte físico avantajado,
que, em época de vacas gordas, foi fazendeiro, sitiante, vaqueiro e capataz. Em
outra época, em que as vacas emagreceram até sumirem, foi comerciante
malsucedido, trabalhador avulso, migrante e braçal, pois a única profissão,
chamada de lida, que lhe sobrara, era o trabalho de chapa, carregando e
descarregando caminhões, mercê de seu porte físico.
O
Insucesso de meu avó baiano foi bem parecido com a desdita do meu avó paulista.
Esse, respeitável proprietário de terras, de família conhecida, que passou, de
uma situação estável a outras
desconfortáveis. De sitiante, passou a arrendatário e pequeno produtor de
arroz, com perdas por conta de mau tempo, à venda de sua pequena propriedade,
até ao êxodo rural e ao deslocamento para a cidade, onde, sem nenhuma profissão
e já sem forças para trabalho pesado, foi ser charreteiro ou cocheiro urbano.
Veio com os poucos recursos que sobraram e com meta definida – fazer os filhos
estudarem, visto que ele próprio era letrado, para os padrões da época e acreditava
que esse seria o caminho.
Voltando
à saga meu minha vó e seus dez filhos, havia um acordo tácito entre o casal que
o pai seria provedor e a mãe, educadora. Ela nunca se fez de rogada ou
postergou essa função e a exerceu com extrema rigorosidade, ensinando aquilo
que sabia de sobejo – trabalhar, honrar compromisso, ser honesto. Essas eram as
primícias humanísticas que estabeleceu como balizamento para formação
profissional e moral para cada um, que teria, dali para frente, pois, na
dificuldade do provedor em desempenhar seu papel precípuo, seriam eles próprios
provedores de si mesmo e do conjunto familiar.
O
ensinamento da matriarca valeu, pois, ante a insuficiente contribuição do
Estado na formação de seus filhos, ela mesmo se incumbiu de mostrar e monitorar
aquilo que seria um possível futuro profissional. Praticar pequeno comércio,
executar pequenos trabalhos, em troca de alguma paga, foram meio de sustento e
os fundamentos que poderíamos chamar de técnicas da prática lícita da
sobrevivência. Então, não foi por coincidência e sim, por via de consequência
que os seus filhos se tornaram exitosos comerciantes, usando as ferramentas que
a mãe lhes entregara – trabalho, honra e honestidade, um legado e um
diferencial no exercício da prática comercial, numa sobrepujança da ação
humanística ao fator tecnológico.
Meu avô
paulista, maltratado por uma doença recorrente, pouco podia contribuir para a
formação ou mesmo para a manutenção da família e, assim, viviam do esforço
coletivo e todos faziam algum trabalho para a subsistência, adiando o
cumprimento da meta que era fazer os filhos estudar. Estudar ou trabalhar? Uma
atividade indispunha a outra durante um certo tempo. Num determinado momento, criaram-se os
cursos noturnos, ginásio, colégio e houve a oportunidade de, num esforço
desgastante, fazer-se os dois. O trabalho, que tinha também a função de ensino
da profissão, era o lado empírico, que passou a ser melhorado pela escola,
mesmo em condições inferiores, pois os trabalhadores estudantes, na verdade,
tinham dupla jornada de aprendizado: o empírico, na lide e a técnica,
científico e humanístico, na sala de aula.
Os
filhos de meus dois avôs se valeram dessa mudança e puderam, mesmo de forma
deficitária, forjar algumas ferramentas, que lhes permitiram alcançar seus
objetivos, os quais, sem esse aporte tecnológico proporcionado pela educação
seria bem mais custoso ou mesmo impossível de ser alcançados,
Hoje,
os estabelecimentos de ensino profissionalizante tentam, de forma sistematizada,
reproduzir um modelo que, na época, surgiu da necessidade e ajudou a muitos,
corrigindo uma falha do sistema então vigente, se é que, naquele tempo, algum
sistema vigorava.
Dessa
circunstância havida na formação de nossos profissionais, surgiram duas figuras
aproximadas pelas palavras parônimas e distanciadas pela falácia de um e da
necessidade de outro: esperto e experto. Há uma procura pelo experto e um
justificável receio pelo seu aparentado.
Afonso de Jesus Borges. Professor de Língua Portuguesa, mas atuou como Bombeiro a vida toda, hoje professor voluntário do Convento São Boa Ventura de Olímpia-SP. Pai de Rafael dos Santos Borges (Professor de Sociedade e Tecnologia, MPCT, Ética e Lógica, Ética e Responsabilidade Profissional da Fatec de Rio Preto e de História, Filosofia e Sociologia da ETEC de Olímpia).