sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A MONTANTE OU A JUSANTE ?

           
Pelos idos dos anos noventa, frequentei o curso de bombeiros para oficiais, em São Paulo, com um ano de duração, em período integral. No curso foi-nos apresentado o mestre em hidráulica, que muito contribuiu para o alto nível do conteúdo didático. Porém, aluno não perdoa qualquer deslize do professor, no caso, o competente profissional tinha uma dificuldade em pronunciar, palavras com som de j, em especial o termo jusante e saía “zusante”. Repetia, com sobejo, a expressão “a montante ou a zusante?” Por troça, também nos perguntávamos – “ zusante ou a montante”. Por isso, jamais esquecerei que a montante fica a cabeceira de um curso d’água e a jusante do lado em que ele vaza.  
                Caminhando pelas margens do nosso riozinho urbano, indo de montante para jusante e voltando da jusante para montante, fico com o coração apertado de vê-lo tão agredido por pessoas que dependem dele e que, ao invés de olhá-lo com reverência, jogam nele tudo quanto é espécie de lixo. Lembro-me do tempo em que ele era fétido e expunha nosso constrangimento, em forma de excrementos a boiar pela sua lâmina d’água (de montante a jusante). Lembro-me das obras que acabaram por tubular os nossos dejetos, livrando-nos daquele constrangimento. Aí os peixes voltaram e as pessoas admiravam os peixes, mas continuavam a jogar lixo. Então a natureza produziu um evento para nos ajudar a repensar nosso comportamento com o riozinho e mandou-nos a estiagem de 2014. 
                Em vão, tentamos ouvir a cantiga dos sapos, arautos seguros da chuva (sabem mais que as moças da Globo), e os sapos não cantaram ou cantaram pouco. Veio julho, não choveu; veio agosto, não choveu. Vai chover em setembro, não choveu e, em outubro, também não. O riozinho voltou a feder – seriam esgotos clandestinos lançados nas galerias pluviais? Já houve isso. É um caso para o nosso departamento de água, chamado de ambiental.
                A água está acabando e vamos ter racionamento, é quase certo. Será que depois, depois do aperto, da aflição haverá planejamento? É bem incerto.
                Um planejamento bem articulado deveria considerar o que os ambientalistas estão prevendo para todos nós, terráqueos. Principalmente para os terráqueos mais pobres, que moram do lado de baixo da linha do equador. Dizem que haverá períodos prolongados de estiagem e chuvas intensas, de quando em quando. Será que já estaria havendo? Dizem os mesmos ambientalistas que, em 2025, estaremos nesse futuro medonho – sem água. O bom planejamento deve considerar a pior das hipóteses e mais um pouquinho. Será que já deveremos nos coçar ou deixa para lá. Isso é coisa de quem não tem o que fazer.
                E a solução para nossa água, estaria a montante ou a jusante?  
                A montante, temos boas chances de atenuar o problema e até resolvê-lo de vez. A Represa do Recco está lá, testemunha de uma época de muita água, que necessitava até ser contida. A represa de contenção está lá ainda, meio abandonada, meio sem sentido útil, mas está lá e pode ser recuperada e transformar-se em represa de reserva. Pode ainda conter alguns fossos, formando volumes mortos, para perenizar o fluxo de água, nos períodos de seca. Mais a montante da represa, cuidar das nascentes, dos merejos, dos olhos d’água, da mata ciliar, numa prática moderna, a que se convencionou chamar de “plantar água”. Procurar os proprietários das terras adjacentes e formar parcerias, conceder isenção do ITR, enfim buscar soluções, igual ao mote da propaganda do nosso banco oficial –“bom para todos”.   
                E a jusante? Também temos enorme potencial de complementarmos a nossa solução. Ouvi de uma pessoa, a quem acompanhei, em apoio logístico, nas sondagens de possibilidades de captação da nossa água a partir do Cachoerinha, que a água usada do parque aquático, depois de sofrer toda carga de fluidos corpóreos dos banhistas - sangue, pus, suor, urina, fezes, esperma, saliva, bronzeadores, produtos de limpeza e demais eteceteras, ainda está apta a, depois de depurada, ser considerada potável.  
                Não se fala aqui em alguns carros pipa, com 8, 10, 15m³ por cessão. A água extraída sob os nossos pés, pertence a todos nós. Seria justo que, sócios ou não sócios, tivessem a compensação do seu uso intensivo. Não seria nenhum disparate afirmar que o clube ou parque construísse uma torre com boa capacidade e recalcasse a água, mesmo a usada, e a fizesse subir graças à altura manométrica da torre, por tubos, hoje em PVC, de jusante para montante, ao longo do rio, dispondo-a na represa de captação, para o devido tratamento. Isso não é caro e, tecnicamente, é “bico” para um engenheiro civil, experto em hidráulica.  
                O futuro prefeito (2017-2020) deverá ter peito e descortino para encarar tal, esse desafio será o ideal de que necessitamos para iniciar o próximo mandato. Não pense diferente, o desafio atual é água na torneira, de forma perene, tal como gostaríamos de ver o nosso precioso Rio Ribeirão Olhos D’água.
 No momento, só nos resta a esperar o sapo cantar. Que o sapo cante com animação, chamando a fêmea para o acasalamento – prevendo que vai chover e haverá bastante água. Boa farra, sapo!
                Explicando: quis, através do preâmbulo, noticiar que não sou especialista no assunto que trato, mas possuo algum conhecimento, rudimentos, coletados em vivência profissional, me permitindo abordar um tema, que pede um tratamento mais específico e com conhecimento bem além dos meus. Faço-o com o escopo de contribuir tão somente, sem destoar da realidade ou afirmar falácias ou impropriedades. Talvez provoque alguma discussão profícua, mesmo me corrigindo naquilo que afirmo. 

                Afonso de Jesus Borges (66) – oficial aposentado da PMESP e do Corpo de Bombeiros.  

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Estágio e Compromisso Com a Educação


Há muito os empresários do Brasil reclamam da educação como fornecedora de uma mão de obra de má qualidade, como se a sociedade mal educada e mal formada fosse outra e não aquela em que ele empresário e sua empresa estão inseridos. Os rankings sobre educação sustentam o discurso, que já se tornou lugar comum, de que a educação é um grande entrave para o desenvolvimento do país. Assim sendo tão grave, tal problema só pode ser resolvido por toda a sociedade, cabendo ao Estado promover educação pública de qualidade (como é a realizada pela Fatec de Rio Preto e Etec de Olímpia) e aos sujeitos assumirem seu papel de educandos e educadores. Nesse sentido existe a possibilidade de estágio dos estudantes da educação profissional nas empresas, que podem receber um profissional que está preocupado com sua atuação, que tem na sua inexperiência uma qualidade e o empresário agir como um educador, que pode contribuir para formação de um profissional que ele idealiza.

Para tal existe a modalidade contrato de estágio que segundo a Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008, “estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de estudantes”. (BRASIL, 2008), por ela o estudante trabalha por seis horas por dia, sob a supervisão de um profissional competente já formado da empresa, é uma excelente forma de empresa de qualquer porte ter segurança em seu processo de seleção de funcionários, aliás os estagiários que são efetivados inserem vínculo de responsabilidade e afeto com a empresa. Em dois anos de central de estágio já testemunhei vários estagiários que preferiram continuar na empresa em que estagiavam ainda que tivessem melhores propostas em outras. 

A educação que havia em duas gerações

O texto a seguir meu pai escreveu me usando como alter ego depois que disse a ele que pensava em problematizar sobre o preconceito que existe no Brasil sobre educação profissional técnica e tecnológica:

                Tempos atrás, foi-me solicitado que escrevesse algo sobre minha avó materna, num momento em que ela receberia uma homenagem póstuma. Algo como uma biografia ou perfil, que exaltasse sua postura de mulher resoluta e de pouca ou quase nenhuma escolaridade e que influiu decisivamente na formação de seus dez filhos, conduzindo-os ao sucesso.
                Naquele momento também, me via às voltas com a elaboração de artigo sobre educação, examinando num mesmo contexto de influência o ensino tecnológico e o humanismo, seus diferentes papéis e a mesma destinação no resultado.
                Cuidando da primeira tarefa, percebi que dois assuntos desconexos, tinham mais pertinência do que poderia supor. Ora, “latu sensu” minha vó foi exímia educadora, pois, em se tratando do mérito no êxito, ela atingiu alto grau de competência.
                Para enquadrá-la na minha linha de raciocínio (tese), necessitei recuar um bom período e acrescentar outros atores na cena, para ajudar compor o enredo e, assim, acabei esmiuçando os papéis dos outros personagens, protagonistas, num momento e coadjuvantes em outros.
                Zé Baiano, meu avó materno, era um bom e bem humorado homem, de porte físico avantajado, que, em época de vacas gordas, foi fazendeiro, sitiante, vaqueiro e capataz. Em outra época, em que as vacas emagreceram até sumirem, foi comerciante malsucedido, trabalhador avulso, migrante e braçal, pois a única profissão, chamada de lida, que lhe sobrara, era o trabalho de chapa, carregando e descarregando caminhões, mercê de seu porte físico.   
                O Insucesso de meu avó baiano foi bem parecido com a desdita do meu avó paulista. Esse, respeitável proprietário de terras, de família conhecida, que passou, de uma situação  estável a outras desconfortáveis. De sitiante, passou a arrendatário e pequeno produtor de arroz, com perdas por conta de mau tempo, à venda de sua pequena propriedade, até ao êxodo rural e ao deslocamento para a cidade, onde, sem nenhuma profissão e já sem forças para trabalho pesado, foi ser charreteiro ou cocheiro urbano. Veio com os poucos recursos que sobraram e com meta definida – fazer os filhos estudarem, visto que ele próprio era letrado, para os padrões da época e acreditava que esse seria o caminho.
                Voltando à saga meu minha vó e seus dez filhos, havia um acordo tácito entre o casal que o pai seria provedor e a mãe, educadora. Ela nunca se fez de rogada ou postergou essa função e a exerceu com extrema rigorosidade, ensinando aquilo que sabia de sobejo – trabalhar, honrar compromisso, ser honesto. Essas eram as primícias humanísticas que estabeleceu como balizamento para formação profissional e moral para cada um, que teria, dali para frente, pois, na dificuldade do provedor em desempenhar seu papel precípuo, seriam eles próprios provedores de si mesmo e do conjunto familiar.
                O ensinamento da matriarca valeu, pois, ante a insuficiente contribuição do Estado na formação de seus filhos, ela mesmo se incumbiu de mostrar e monitorar aquilo que seria um possível futuro profissional. Praticar pequeno comércio, executar pequenos trabalhos, em troca de alguma paga, foram meio de sustento e os fundamentos que poderíamos chamar de técnicas da prática lícita da sobrevivência. Então, não foi por coincidência e sim, por via de consequência que os seus filhos se tornaram exitosos comerciantes, usando as ferramentas que a mãe lhes entregara – trabalho, honra e honestidade, um legado e um diferencial no exercício da prática comercial, numa sobrepujança da ação humanística ao fator tecnológico.
Meu avô paulista, maltratado por uma doença recorrente, pouco podia contribuir para a formação ou mesmo para a manutenção da família e, assim, viviam do esforço coletivo e todos faziam algum trabalho para a subsistência, adiando o cumprimento da meta que era fazer os filhos estudar. Estudar ou trabalhar? Uma atividade indispunha a outra durante um certo tempo.       Num determinado momento, criaram-se os cursos noturnos, ginásio, colégio e houve a oportunidade de, num esforço desgastante, fazer-se os dois. O trabalho, que tinha também a função de ensino da profissão, era o lado empírico, que passou a ser melhorado pela escola, mesmo em condições inferiores, pois os trabalhadores estudantes, na verdade, tinham dupla jornada de aprendizado: o empírico, na lide e a técnica, científico e humanístico, na sala de aula.
                Os filhos de meus dois avôs se valeram dessa mudança e puderam, mesmo de forma deficitária, forjar algumas ferramentas, que lhes permitiram alcançar seus objetivos, os quais, sem esse aporte tecnológico proporcionado pela educação seria bem mais custoso ou mesmo impossível de ser alcançados,
                Hoje, os estabelecimentos de ensino profissionalizante tentam, de forma sistematizada, reproduzir um modelo que, na época, surgiu da necessidade e ajudou a muitos, corrigindo uma falha do sistema então vigente, se é que, naquele tempo, algum sistema vigorava.

                Dessa circunstância havida na formação de nossos profissionais, surgiram duas figuras aproximadas pelas palavras parônimas e distanciadas pela falácia de um e da necessidade de outro: esperto e experto. Há uma procura pelo experto e um justificável receio pelo seu aparentado.  

Afonso de Jesus Borges. Professor de Língua Portuguesa, mas atuou como Bombeiro a vida toda, hoje professor voluntário do Convento São Boa Ventura de Olímpia-SP. Pai de Rafael dos Santos Borges (Professor de Sociedade e Tecnologia, MPCT, Ética e Lógica, Ética e Responsabilidade Profissional da Fatec de Rio Preto e de História, Filosofia e Sociologia da ETEC de Olímpia).

Educação Profissional: Para Além da Mais Valia.






A educação profissional no Brasil, em especial em São Paulo, em particular em Rio Preto e região tem acrescido possibilidades de desenvolvimento não apenas ao país ou as cidades, mas os sujeitos que a compõe. A educação profissional tem sido tratada por intelectuais, militantes da educação e estudiosos sobre educação como uma coisa de segunda ordem, em “Brasil 500 anos: Tópicas sobre educação” introduz-se e concluísse em capítulo destinado ao tema que a educação profissional foi orquestrada pela elite para agregar mais valia aos trabalhadores, porém, as circunstâncias dos últimos anos nos mostra que essa interpretação é simplista. Nos últimos quinze anos houve uma rápida ampliação dessa modalidade de ensino, e isso precisa ser documentado, dando voz aos trabalhadores que clamam e lutam por educação profissional, que de maneira alguma é oposta à educação humanística.
Quando por volta de 2000 fui à aula inaugural da minha graduação em história o professor Franklin Leopoldo, então diretor da FFLCH-USP, nos apresentou uma reflexão sobre a fundação da USP, enfatizando que o intento dos anos 30 era formação da elite dirigente desse país. Assim ficou na maior universidade pública do Brasil o sentido de que a educação está relacionada ao exercício do poder, logo, chegar à universidade, em especial a pública no Brasil é chegar a um centro privilegiado de poder.
O mundo mudou nesses setenta e poucos anos (entre a fundação da USP e a expansão da Educação Superior Tecnológica), porém educação ainda é exercício de poder, fundamental para o exercício do poder de cidadania numa sociedade democrática. Além do mais, as mudanças tecnológicas promoveram transformações na relação de trabalho e poder, a tecnologia e a educação vão além de agregar mais valia relativa ao trabalhador explorado, educação e tecnologia podem promover autonomia do trabalhador e práticas de produção inovadoras e solidárias. (Veja o caso dos softwares livres e emergência de uma cultura hacker transgressora e inovadora).

O trabalhador, ou estudante que busca uma formação profissional tecnológica ou técnica, não só está a buscar agregar valor ao seu trabalho, como também se mostra capaz e muito eficiente em problematizar sobre a sociedade em que vive e, por sua reflexão e trabalho, buscar superar os dilemas dela. Por isso termino esse artigo de opinião expressando que a educação tecnológica, técnica e profissional no Brasil não são bitoladas e alienadas pela ânsia capitalista. Ela é instrumento de desenvolvimento humano e de libertação dos trabalhadores e me arrisco em escrever que seus críticos das universidades tradicionais, estão defendendo mais seu filão do mercado, do que a educação de qualidade. Tal qualidade da educação pública profissional eu testemunho há mais de dois anos no meu “ganha pão”: ETEC de Olímpia e Fatec de Rio Preto.